terça-feira, 2 de outubro de 2012

Cortes cegos...mas obrigatórios!

Lembro-me como se fosse hoje...era um puto, como tantos outros da minha idade na altura, descobrindo a cada dia que passava os novos e surpreendentes prazeres da vida, com a curiosidade natural que inunda o cérebro dos putos, que tal como eu, queriam aprender, e de tudo um pouco vir a saber, fosse no campo da jogatina, fosse nas mais variadíssimas situações que se iam apresentando à minha pessoa no decorrer do dia-a-dia, fosse no mais sério campo da aprendizagem na escola para mais tarde, um dia, me vir a transformar no homem que sou hoje e servir, com o labor dos meus braços e do meu cérebro, este país onde nasci, sem que me fosse explicado o porquê deste nascimento, nem tão pouco porquê nesta localização geográfica...adiante. Nasci porque, duas pessoas que se amavam e ainda se amam, decidiram um dia fazer e criar um filho!
 
Viana do Castelo, cidade onde saudavelmente cresci e vivi durante (quase) trinta anos; houve alguém que ao fim de tanto tempo como este citado anteriormente, conseguiu prender este coração vadio e selvagem, fazendo com que este homem assentasse a cabeça de uma vez por todas e trocasse a cidade pela aldeia, para viver o seu amor...Viana, como dizia, era uma cidade tão diferente daquilo que hoje em dia é! O marasmo que se vivia, olhando agora para trás há muitos e muitos anos, e a falta de desenvolvimento, faziam com que a mesma fosse antes uma aldeia grande, do que mais própriamente uma cidade. Lembro-me perfeitamente, como se fosse hoje, das recomendações da minha mãe, sempre que apanhava aqueles velhos, azulados, barulhentos e altamente poluentes autocarros dos transportes Sordo (sediados em Santa Marta de Portuzelo) quando ia para a escola preparatória Frei Bartolomeu dos Mártires ou então quando ia para aquela que há época se chamava Escola de Música Maestro José Pedro. Foi nesta escola, sob a austera figura do professor e maestro citado anteriormente, que aprendi o solfejo, aprendi a desenvolver o gosto pela música e, onde aprendi a tocar variados instrumentos musicais, desde a flauta-de-bisel, à gaita-de-foles, passando pela flauta transversal e mais tarde pelo clarinete e saxofone. Todos eles instrumentos de sopro, ainda hoje [passados tantos anos] os meus predilectos! Depois das aulas de música e na saída das mesmas para apanhar de novo o autocarro que me levaria de volta a casa, na Meadela, ficava sempre fascinado ao olhar pelo antigo gradeamento da doca de pesca, frontal à escola de música, para os numerosos bacalhoeiros algo enferrujados pelas longas passagens nos mares gelados da Terra-nova, embora imponentes, que ali repousavam em bom porto (seguindo a linguagem dos homens do mar) e preparavam para breve, nova partida. Um deles diferia de todos os outros, tinha uma grande cruz vermelha pintada na chaminé, enferrujado também como todos os seus vizinhos ancorados na doca, mas diferente...aquele vi-o somente uma vez e talvez, na sua última partida rumo a Lisboa e a uma morte mais que anunciada...branco, enferrujado, enorme...imponente...era o navio-hospital Gil Eannes! Soube-o, porque o meu pai, que sempre me levou nestes tempos de garoto, à doca para ver estes gigantes do mar que me fascinavam quando os observava ancorados em Viana, me explicou as diferenças daquele navio para os demais, seus companheiros de descanso. Nunca mais lhe pus os "olhos em cima", até que um dia, muito mais tarde, já adolescente ou homem feito, não sei precisar com exactidão, me chegou aos ouvidos que a Câmara Municipal com a ajuda dos muitos vianenses que ajudaram, salvou do desmantelamento este navio construído nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo e que o mesmo iria repousar por muitos e longos anos, na doca de Viana, precisamente no local onde um dia, menino, o vi ancorado...O gradeamento e altos muros da doca, assim como o pavilhão da pioneira Celnorte, depois Portucel e agora espanhola Europac (tudo vai sendo vendido, neste país) já lá não estão, como estiveram por muitos anos, talvez por isto, de longe a longe goste de ir ao shopping da cidade só para apreciar as belas e melancólicas fotografias que tapam as lojas desocupadas (pela crise) onde se podem ver imagens de uma "cidade que já não existe", entre elas as da doca, do seu imponente gradeamento sobre muros e de alguns grandes navios lá ancorados!
 
Os anos foram passando, a cidade foi mudando e se foi desenvolvendo (para melhor), algumas "coisas" desapareceram outras foram mudando de sítio, estou-me a lembrar, por exemplo, da estátua do navegador vianês Fagundes...e eu...eu cresci, cresci como todos os demais putos da minha idade e hoje, homem feito, deixando para trás em lembranças, essa saudosa década de oitenta, onde ocorreu tudo o que relatei anteriormente, vejo que nestes tempos modernos já não se encontram na velha doca, os muros e o gradeamento imponente de que falei, nem tão pouco os gigantes bacalhoeiros, apenas alguns (poucos) barcos de pesca, muitos bardos (gordos) que se alimentam de todo o lixo no lamaçal que se vê naquelas águas; mas, memória de outros tempos, lá continua imponente, o navio Gil Eannes e naquele largo que tão boas recordações me traz, hoje em dia povoado de toxicodependentes que "ganham guito" para o sustento do terrível vício da droga estacionando carros, ainda lá continua a escola do falecido e grande homem, maestro José Pedro, que incutiu por muitos e longos anos, aos jovens vianenses, o gosto pela música e pela cultura. Eu fui um deles!
 
Nestes tristes tempos modernos, a crise instalou-se, e Portugal, vitima de sucessivas más governações, tanto à esquerda como à direita, encontra-se neste momento em situação de bancarrota. Por este motivo o governo da nação, cortando a tudo o que ache despesismo, os credores da nação assim o exigem; optou por cortar (por vezes cegamente) apoios do Estado a numerosas fundações e organizações que beneficiavam de apoios estatais! Viana do Castelo e algumas das suas instituições, não passaram incólumes a este facto e neste texto já falei de três instituições, que sem apelo nem agravo, se verão privadas destes preciosos e imprescindíveis apoios monetários. Duas delas culturais e, uma outra empresarial que, "vigaristicamente falando", vai ser alienada (ou criminosamente doada) a privados.
Coincidência com o meu texto?
Não! Foi propositado!
Falo, pela ordem que enumerei, das Fundações Gil Eannes e Maestro José Pedro e claro está em terceiro, dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo!
 
Que drama para esta cidade! E que injustiça! Em seguida, como vianense ferido no seu orgulho transcrevo na integra a notícia, conforme vem redigida no web site da Câmara Municipal.


 
"A Câmara Municipal de Viana do Castelo aprovou ontem, em reunião de executivo, a extinção da Fundação Maestro José Pedro, conforme obriga a legislação aprovada recentemente pelo governo, e a redução em trinta por cento dos subsídios concedidos à Fundação Gil Eannes. De fora, fica a Fundação Átrio da Música, onde a autarquia não tem qualquer comparticipação financeira.
Assim, relativamente à Fundação Gil Eannes, e em cumprimento do determinado na Resolução do Conselho de Ministros, a edilidade deliberou que será reduzido em trinta por cento o montante dos subsídios concedidos a esta entidade a partir de 2013.
No que toca à Fundação Maestro José Pedro, a proposta do Governo sugeria a sua extinção por duas razões: a excessiva dependência de apoios públicos (61,7 por cento) e a sobreposição da sua actividade com a da Academia de Música e da Escola Profissional de Música. A autarquia, embora discordando, vai assim dar cumprimento à Resolução do Conselho de Ministros e vai submeter à Assembleia Municipal a extinção desta fundação por conversão em outra instituição que possa prosseguir os mesmos fins estatutários.
De acordo com o Município, trata-se de “uma avaliação cega do Governo tendo em conta critérios puramente economicistas” mas que obriga à extinção sem atender à especificidade de base municipal. A autarquia lembra que a fundação presta um serviço social à população em diversos domínios, nomeadamente cénicos e musicais, e que a extinção apenas acontece porque, caso contrário, haverá lugar a uma redução das transferências do Orçamento de estado.
A Câmara Municipal, conjuntamente com a direcção da fundação, está agora a procurar uma solução que permita a continuidade do trabalho que está a ser desenvolvido pela instituição junto das crianças e jovens vianenses.
Viana do Castelo, 02 de Outubro de 2012 "


 
 
Já de si dilapidada em vários factores sócio económicos (teria aqui assunto para muitos tópicos), Viana do Castelo (que carece de tanta coisa, dado o seu afastamento geográfico com a capital), vê assim privadas de alguns apoios substanciais, duas fundações importantíssimas (e nem vou comentar o factor Estaleiros Navais), quer no apoio e educação das juventudes do distrito, quer no fomento do turismo e de mais valias económicas que auxiliem e enriqueçam o município, turismo e comércios locais...mais uma pedrada no charco, ou lembrando algumas que ainda continuam pela doca como há trinta e muitos anos atrás, as gaivotas, mais uma bela...ca****...(nem vou dizer o termo, o decoro assim me obriga), vindo de Sul, onde as mentes iluminadas de Lisboa só se preocupam com o bem estar económico dos "Mexias" deste país, deixando há míngua intelectual e na ignorância, o povo, os jovens, o futuro...para que esses "mexias" passem noites e noites confortavelmente sentadinhos no seu chaise longue fabricado em genuína pele, contando euros, euros, euros, euros...e mais euros!!!
 
 
Nada de espantar, para quem há bem pouco decidiu extinguir o Ministério da Cultura...
 
 
Longe vão os tempos do puto, que tinha um "medo de rachar" da carantonha austera do saudoso maestro...quando comparada com estes tempos modernos, a sua expressão facial, mais parecia a de um anjo...

Lamentável, de facto, estes cortes cegos...mas obrigatórios!



 

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