sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

(DES)ENCANTADO MUNDO BRANCO - A VIAGEM - 4.ª Parte.

Continuação...

Deixando o grande lago para trás o colosso avançou pela estrada por entre fragas e encostas de montanha, num trajecto curto entre o já mencionado lago e a aldeia de Ribadelago. Pensará por ventura o leitor - Que raio levará alguém a conduzir uma excursão a uma pequena aldeia perdida nas montanhas de Zamora? É simples, primeiro pela proximidade ao grande Lago de Sanabria, apenas quatro quilómetros os separam, em segundo e talvez o mais primordial dos motivos; nesta pequena aldeia, perdida nas fraldas das agrestes serranias zamoranas, ocorreu  uma das maiores tragédias de toda a história civil de Espanha e o autor do blogue desde o primeiro momento que tomou contacto com o sofrimento pelo qual passou a gente que há época ali habitava, sentiu-se invadido por um clamor que pedia ternura e justiça para tão simplórios homens e mulheres do interior. Foi quase como um amor à primeira vista, isto se é que se pode falar de amor, não andam os amores muitas e variadas vezes de mãos dadas com a tragédia? A história triste e colossalmente dolorosa  que aquelas gentes viveram na noite de 9 de Janeiro de 1959, logo ali no primeiro contacto, fez com que o autor do blogue pelo pequeno povoado e seu povo simples, se apaixonasse perdidamente...
 
Como não incluí-la no trajecto do encantado mundo branco! Impossível ignorar o que de todo possa ser ignorável!
 
Para tal entendê-la, terá o leitor de retroceder cinquenta e cinco anos no tempo e colocar os ponteiros do relógio precisamente às 00.20h da madrugada! Primeiro motivo para a tragédia, o Inverno nesse ano estava a pautar-se por uma rigorosidade extrema, queda de chuva forte e abundante por dias e dias repetidamente, o que fez aumentar significativamente o caudal de rios como o Tera, que nasce junto ao pico Peña Trevinca, o ponto mais alto da Sierra de La Cabrera, a quase 2200m de altitude e que descendo a serra por entre enormes desfiladeiros passa por Ribadelago, serve o Lago de Sanabria e quase 140km depois da nascente, desagua no rio Esla, afluente do Douro. O segundo motivo, prende-se com o simples facto de em pleno regime franquista, semelhante à ditadura que se vivia em Portugal, para que meia dúzia de barões do restrito circulo de amigos de Franco, à custa da construção de aproveitamentos hidroeléctricos, ganhassem fortunas colossais, uma barragem oito quilómetros a montante da aldeia de Ribadelago foi construída para que se fizesse retenção de águas e a baptizaram com o pomposo nome de Presa de Tera. À semelhança dos tempos de agora, o que importava era ganhar dinheiro, muito dinheiro e a barragem foi construída em tempo recorde, publicidade enganosa mas solene para o regime, com materiais de qualidade muito duvidosa! Por volta da meia noite e vinte minutos um ruído ensurdecedor ouvia-se oito quilómetros abaixo da barragem na aldeia de Ribadelago, um som, como contam ainda os já poucos sobreviventes (os anos vão passando) nunca antes ouvido por aquelas paragens...Oito quilómetros acima o impensável tinha acontecido! Cedendo à força e peso das águas que o muro da barragem prendia pelo excesso de queda de chuva, há dias que chovia copiosamente, meio muro da mesma cedeu e desmoronou-se libertando anarquicamente cerca de oito milhões de m3 de água, que por onde passaram tudo arrasaram! Oito quilómetros abaixo o ruído era cada vez mais audível e os habitantes de Ribadelago, sem que o soubessem, iam receber uma visita dantesca! Rapidamente, em apenas vinte minutos, a maré de pedras, lamas, árvores e tudo o que se lhe deparou pela frente, percorrendo os cerca de oito quilómetros de desfiladeiro a que ali dão o nome de Cañon de Tera, muito semelhante ao que podemos ver, embora em ponto muito menor, nas quedas de água de São Lourenço,  atingia o pequeno povoado, arrasando casas, gentes e animais e tudo o que estava no seu encalço! A onda que atingiu a aldeia segundo os relatos de outrora mediria cerca de nove metros de altura! Imagine agora o leitor, a aflição daquelas gentes, de noite, sem luz eléctrica que os servissem para ver melhor, fugirem nem sabendo bem do quê, muito menos para onde...Trágico!?! Como não sentir a dor destas gentes que num ápice perderam tudo, principalmente os seus familiares! Quantas mães choraram os seus filhos, quantos filhos choraram suas mães, quantos maridos choraram suas esposas e quantas esposas choraram os seus maridos! Quantos gritos e urros de horror os picos da Sierra de La Cabrera escutaram naquela fatídica noite! Quantos!?!
Tudo ficou arrasado por uma enorme torrente de água e lama vindas da barragem do Tera.
A tragédia estava consumada...
Hoje em dia, cinquenta e cinco anos depois a barragem continua no mesmo local, estática e imponente, com meio muro ao alto e outro meio completamente desaparecido...para que a memória pela dantesca situação pela qual passou este nobre povo nunca se esqueça, nunca morra!
 
Só por isto, Ribadelago, entenderá agora o leitor, merece visita! Óbvio que o regime tudo tentou camuflar, alguns engenheiros foram culpados pelo tribunal mas nunca cumpriram a pena, os donos e mentores da obra, a coberto da empresa MONCABRIL, nunca foram chamados à justiça e a culpa acabou por morrer solteira, tal como se diz em Portugal! Como compensação, Franco, um eterno iluminado, pensando que reconfortaria quem reconfortado não estava e muito menos veio a estar, decidiu que se construísse uma aldeia nova, e numa encosta de montanha um pouco a sul de Ribadelago (hoje em dia) Viejo, onde nem os raios solares a alcançam, veja-se o modo como se tratavam as pessoas, que para as elites de então não eram nada mais que ignorantes que habitavam no profundo da serra, se edificou Ribadelago Nuevo, dominada por construções de traça moderna, todas iguais, a simetria por vezes é terrível, talvez seguindo a máxima comunista - igual para todos - e assim se evitassem invejas posteriores, o que seria de estranhar num regime ditatorial de direita como aquele a que Franco presidia e que, moral da história, tal como a aldeia nova, nunca agradou aos habitantes de RIBADELAGO.
 
Por cada familiar perdido, as famílias enlutadas receberam as seguintes e irrisórias indemnizações: por cada homem 95000pesetas, por cada mulher 75000pesetas e por cada criança 25000pesetas
 
Pasme o leitor perante tal alarvidade...!
 
Dos 540 habitantes 144 morreram e destes só 28 corpos foram resgatados...os outros, perderam-se para sempre no fundo do Lago de Sanabria!!!
 
 
Quem chega à aldeia e atravessa a ponte de acesso à mesma sobre o Tera, tem logo ali uma recepção impressionante. Uma estátua, simbolizando uma mulher segurando uma criança no colo, trajando conforme os costumes da época e estilizando uma fotografia que há cinquenta e cinco anos atrás foi uma das fotografias que correu mundo e mais vista foi, símbolo da enorme tragédia vivida em Espanha, (Franco não conseguiu levar a cabo o seu intento de abafar o caso e até ajuda humanitária a nível mundial a estas paragens chegou dos quatro cantos do mundo), ergue-se para receber todo e qualquer forasteiro que venha até Ribadelago Viejo e conheça a calamitosa realidade que ali se viveu! Outra imagem famosa na altura foi a de um homem cego, que cegou durante os duros trabalhos de construção da barragem, com o rosto toldado pela dor, segurando uma criança pela mão e (sabe-o o autor do blogue) clamando incessantemente pela esposa, que se deixou levar pelas águas vindas da barragem, de modo a que pelo menos aquele filho se salvasse, os outros morreriam com ela!
 
 
 
 
 
 
 
Igreja destruída! A fachada que se vê foi trasladada para a nova aldeia de Ribadelago Nuevo.
 
 
Imagem do muro da barragem semi destruído, oito quilómetros a montante de Ribadelago Viejo.
 

 
Já na aldeia o numeroso grupo de lanhesenses deteve-se junto à estátua da sofrida mulher e aliou-se em sentimento, na tremenda dor pela qual passou este povo de gente simples, que vivia do que a terra e o Tera lhes dava! Com extrema atenção foram passeando pela aldeia, colocando várias perguntas ao autor do blogue e calmamente, apreciando as paisagens rurais de uma enorme beleza contrastando com a agrura dos picos graníticos do imponente cañon do Tera.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O que resta da igreja de Ribadelago.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Campanário da igreja de Ribadelago Viejo trasladado para Ribadelago Nuevo.
 
 
Era hora de partir...deixar entregue a si a às suas dores esta aldeia mítica, prestar a este povo as devidas homenagens e enfim, depois, seguir viagem!
 
Que a memória daqueles homens, mulheres e crianças, perdidos para sempre muito por causa da ganância humana, nunca se perca, sempre se recorde!
 
O colosso avançou em direcção a Puebla de Sanabria, o encantado mundo branco caminhava para o seu final...
 
continua...

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